Todos os detalhes de nossas vidas arquivados

quarta-feira, setembro 09, 2009

Fonte: Estadão - Link
por Rafael Cabral

Gordon Bell nunca se esquecerá da música que ouviu ontem, no elevador, enquanto distraidamente subia até o seu escritório, na Microsoft. Nunca esquecerá o que sentiu com os primeiros acordes ou mesmo a hora do dia em que tudo aconteceu. Talvez o seu cérebro físico sim, se esqueça - mas não a sua memória externa, bem maior e mais detalhista.

Não, a música não tinha nada de significativa. Mesmo assim, como todo o resto do que faz, ouve e vê, foi parar no backup que Bell faz de toda a sua vida, o projeto MyLifeBits, que pretende revolucionar a maneira com que lidamos com nossos pensamentos. Detalhes irrelevantes, nomes, sensações. Tudo é arquivado. A memória é total. O objetivo? Provar que a frieza das máquinas pode trazer dados bem mais verdadeiros do que nossas lembranças, afetivas e fugidias.



Bell soterrado por dados, em foto da Fast Company

Ao lado do também pesquisador Jim Gemmel, Bell lançou recentemente um livro chamado Total Recall: How the E-Memory Revolution Will Change Everything (Memória Total: Como a Revolução da Memória Digital Vai Mudar Tudo). Os dois conversaram com o Link para a nossa capa dessa segunda-feira, sobre as vantagens e desvantagens de termos todos os nossos dados online. Confira o papo completo:

Em Total Recall vocês projetam um mundo em que a memória digital suplanta a mente humana na capacidade de armazenar detalhes de nossas vidas. Por que isso é necessariamente bom?

Gordon Bell: São muitas as razões. Para começar, a memória eletrônica será mais confiável que a nossa e trará dados certos nos quais poderemos basear nossas verdades, ao contrário dos dados que você acha que lembra. Em uma consulta médica, por exemplo, ele saberá os hábitos de toda a sua família e também os seus, podendo melhorar o diagnóstico. Deixando de ocupar nossas cabeças com um monte de coisas irrelevantes, poderemos deixar o espaço para o que importa. Além do mais, seremos imortais para nossas famílias e amigos.

Jim Gemmel: Historicamente, escrever sempre foi a melhor maneira de expandir nossa memória. O poder disso é tão grande que as pessoas querem suas crianças alfabetizadas e a evolução das sociedades é medida por quão letradas elas são. Com a memória eletrônica isso foi potencializado. Vamos arquivar detalhes da nossa saúde, produtividade, aprendizado, prazer e mandá-los para a posteridade.

Mas não há importância alguma no ato de esquecer?

Gordon Bell: Não que eu saiba. As pessoas não costumam gostar de quando esquecem as coisas. Isso é considerado por elas – e por mim – uma falha, um bug. Além do mais, existe aquele velho dito: “Aqueles que esquecem a História estão condenados a repeti-la”. Devemos lembrar de tudo, sim, para que as pessoas decidam o que é verdade e o que não é. Se esquecer é importante, as pessoas mais satisfeitas devem ser aquelas com Alzheimer.

Jim Gemmel: Quem advoga o esquecimento costuma citar pessoas atormentadas por lembranças traumáticas. Na memória humana, a retenção dessas lembranças é prejudicial e por isso é um bug, como Gordon disse. Para nossas mentes, esquecer é fundamental para eliminar esses eventos traumáticos, uma questão de saúde. Já as memórias eletrônicas podem ser arquivadas, mas protegidas de um modo que não prejudiquem as pessoas. Somente as pessoas saberão como essas lembranças serão controladas, não há uma regra. O que você não quer lembrar hoje você pode querer lembrar anos depois.


O que aconteceria se nós pudéssemos instantaneamente acessar todas as informações as quais fomos expostos nas nossas vidas?

Gordon Bell: Não tenho a mínima ideia, mas usando nosso sistema atual, nós já podemos facilmente lembrar de toda nossa correspondência, páginas acessadas, artigos escritos e lidos... Além disso, posso saber em que hotel fiquei em Barcelona no ano de 1999 (Muito bom para poder voltar depois).

Jim Gemmel: Entenderíamos os fatos direito. Nós poderíamos encarar as ideias em seus detalhes. Nós poderíamos finalmente entender nossos relacionamentos, também em detalhes. Nós poderíamos dar aos médicos informações de melhor qualidade, o que acabaria nos ajudando também. Estaríamos mais preparados para reuniões e para ajudar nossos clientes. Em uma frase: iríamos lembrar e aproveitar.

Existe alguma conexão entre o MyLifeBits e sites de Lifestreaming, que agregam toda nossa 'vida online'? São conceitos semelhantes?

Gordon Bell: Sim, os dois conceitos usam a facilidade que a tecnologia nos deu para arquivar. Mas existem diferenças. O lifestreaming fala sobre comunicação com amigos, família e pessoas que gostam de espionar as outras. MyLifeBits fala sobre ajudar a memória, armazenar dados e acabar com o esforço de lembrar coisas irrelevantes.

Jim Gemmel: Nós somos life-loggers e não life-bloggers. Não nos interessamos em tornar todas essas informações públicas. Achamos que quem coloca todos os seus dados online e compartilha com os outros não passa de um maluco. No entanto, um compartilhamento responsável pode ser proveitoso.

O cientista norte-americano Ray Kurzweil projetou que, em 2045, nossos cérebros estarão online e que será tão fácil fazer um backup dos nossos pensamentos quanto fazemos dos nossos computadores. Como vocês vêem isso?

Gordon Bell: Isso está bem distante do que eu acredito, mas provavelmente não é impossível. Não sei como será possível armazenar tudo o que pensamos, com cérebros conectados na internet. A mente é um sistema muito, muito complexo. Imagine como seria navegar por uma mente. Nem saberíamos por onde começar. Hoje, mesmo navegar pelos nossos cérebros é um problema. Não conseguimos nem resolver problemas, lembrar de algo ou mesmo pensar de maneira inteligente. De qualquer jeito, seria bom não precisar digitar ou falar nada e mesmo assim nossos computadores nos entenderem.

Jim Gemmel: Ainda existe muito para entendermos sobre a mente humana para que possamos especular o futuro. A memória total que propusemos, no entanto, é inevitável e no máximo em 10 anos já existirão tecnologias que usam esse conceito. Não está entre nossos objetivos – ao contrário de Kurzweil - o de colocar nosso cérebro online para que outros possam acessar, ao menos enquanto estivermos vivos. Já quando eu morrer, eu posso compartilhar meus pensamentos com o mundo. Uma versão virtual de mim viverá e falará com os outros quando eu não estiver mais por aqui, fisicamente.

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